O meio editorial e a literatura são coisas diferentes
Parece óbvio, mas a gente frequentemente esquece disso
A literatura vem antes do meio editorial. Ou deveria.
É ela que permite que esse meio exista, que em torno dela se estabeleça todo um ecossistema complexo, capaz de fazer girar a engrenagem da indústria do livro: editoras, gráficas, distribuidoras, livrarias, profissionais executando funções mil. Tudo isso para que o objeto livro (seja físico ou digital) exista.
Mas o meio editorial é imprescindível para que a literatura aconteça? Claro que não.
Se eu escrevo e divulgo meu texto nas redes sociais, estou fazendo literatura. Mesmo que eu não divulgue, ainda assim estou fazendo literatura. Entretanto, culturalmente, se olharmos para a maneira como fomos nos organizando enquanto leitores, é difícil imaginar a literatura separada do meio editorial.
E por que isso importa?
Porque, acredito, muitos dos dilemas e agruras que vivemos enquanto autores, especialmente autores brasileiros, têm suas raízes no meio editorial, não na literatura.
Insisto: parece óbvio, mas não é. Soa assim agora, aqui, porque estou racionalizando. Mas no dia a dia, no meio da vida atribulada que a maioria de nós leva, a gente tende a se decepcionar com a literatura, com o ofício de ser escritor, quando, na verdade, o que nos decepciona é o entorno. É o meio editorial e literário como estrutura.
Editoras que não prestam contas e não pagam direitos? Meio editorial.
Hegemonia de um grupo dominante? Meio editorial.
Livros publicados por critérios que pouco ou nada têm a ver com a qualidade literária da obra? Meio editorial.
Favorecimento de autores em alta por razões passageiras? Meio editorial.
Investimento concentrado em quem já vende, pra vender ainda mais? Meio editorial.
Posicionamentos oportunistas disfarçados de discurso progressista (sim, tem bastante)? Meio editorial.
Um sistema que remunera com a menor fatia (10% do valor de capa) justamente quem cria tudo? Meio editorial.
Ter que ter diversos empregos e ter burnout porque ser apenas escritor, para a maior parte, não banca o sustento? Meio editorial que paga pouco em um país que lê pouco.
Sim, existem problemas que extrapolam o meio editorial. São questões culturais, estruturais, históricas, que atravessam o campo literário, e pertencem a algo maior, ao tecido social do país.
Como imaginar um público leitor se cerca de 50% da população brasileira vive com uma renda de R$ 700 por mês, e cerca de 27% estão em situação de extrema pobreza, com renda inferior a R$ 667 mensais?
Ainda assim, isso só reforça meu argumento: nossa frustração não vem da literatura, vem de condições externas a ela. A literatura segue sendo aquilo que devemos preservar, aquilo a que devemos ser devotos, e por cuja integridade devemos nos esforçar.
É justo, e necessário até, lembrar disso sempre que nos encontramos desmotivados, desencantados ou pensando em abandonar o ofício. Porque o que nos exaure não é a escrita, é o sistema em torno dela.
Em um post anterior, abordei como acredito que o meio editorial pode se beneficiar de novas tecnologias para criar um sistema de publicação que seja mais justo com todos que fazem parte da cadeia produtiva do livro. Destaco especialmente os contratos inteligentes via blockchain, que seriam a base de um novo modelo trabalho e remuneração.
Você pode ler este post aqui:
O fim do meio editorial como o conhecemos
Basicamente, parto de uma premissa que é a seguinte:
Se o livro é coletivo, o lucro não deveria ser solitário. Mas hoje, o modelo atual remunera melhor quem empacota (viabiliza) do que quem cria.
Só que o sistema passa, se transforma (espero que pra melhor), e a literatura fica.
E é a isso que devemos nos ater, mesmo diante dos revezes de uma carreira literária com todas as suas peculiaridades no Brasil.
Maior parte das pessoas que falam de literatura hoje falam de mercado (e de uma fatia dele) e nem desconfiam.
Verdade! O meio editorial e o social acabam influindo, e muito, no estado de coisas que torna a realidade dos autores nacionais tão árdua. Ainda tendo a achar que o trabalho das editoras, em que pesem os seus defeitos, bem apontados por você no post, ajuda a ordenar o mercado e marcar parâmetros de qualidade. Concordo que um novo modelo de negócios, capaz de valorizar quem cria, se faz necessário. Você teria sugestões de como poderíamos caminhar nessa direção? O tema é muito interessante e se presta a especulações. Pretende continuar postando sobre o assunto?