Eu acho que o meio literário como a gente o conhece pode estar com os dias contados. Não é coisa pra agora, mas certamente, é pra daqui a pouco.
Parte disso tem a ver com tecnologia e Inteligência Artificial — o que pode representar muitos riscos para nós autores e para a classe artística, como um todo. Mas eu também tenho acreditado que dá pra tentar ver uma luz no fim desse túnel. E essa luz tem a ver com algo chamado Web3, mas calma, que já chego lá.
Por tanto tempo, nós, aurores, temos sido explorados por um modelo que é injusto, e enquanto a tecnologia e a Internet, como foi prometido lá atrás, deveriam criar mecanismos mais sensatos de remuneração, nem de longe isso é verdade. Os que sobrevivem a partir desses mecanismos são pontos fora da curva. Mas muito fora da curva mesmo.
O restante de nós virou gado no curral digital das big techs, entregando nossos dados a peso de ouro. Monetizaram nossa atenção e tudo que recebemos em troca é alguns likes e descargas vazias e viciantes de dopamina.
Então, pense nesse texto como um manifesto. Uma bandeira cravada para começarmos a pensar juntos em novas alternativas a partir de um mundo que, se não podemos lutar contra, devemos ser resilientes o suficiente para tirar o melhor dele em nosso proveito.
Não trago respostas prontas, mas levanto perguntas que considero urgentes e flerto com ideias que eu acredito que fazem sentido.
Porque se a literatura sempre foi, também, um território para imaginar futuros, talvez esteja na hora do meio literário começar a imaginar o seu, a partir dos próprios autores.
Antes de falar em Web3, é importante entender o caminho que a internet percorreu até aqui, em suas duas versões anteriores.
Web1 (1992–2002)
Era só leitura. Uma web estática, unidirecional. Usuários apenas consumiam conteúdo. Os sites funcionavam como versões digitais de jornais, catálogos, enciclopédias. Era um modelo baseado em protocolos abertos, mas com pouca interatividade.
Web2 (2002–2020)
A Web2 trouxe a escrita: os usuários passaram a criar conteúdo. Mas sem possuir nada do que criavam. As grandes plataformas, as big techs, centralizaram os dados, o poder e o lucro. É o que se chama de modelo dos “jardins murados”: você entra, mas tudo ali dentro pertence à plataforma — inclusive você. É um modelo baseado inteiramente na extração de valor do usuário.
Web3 (2020–hoje)
Desde 2020, a gente vem atravessando uma nova transição: a Web3. Além de leitura e escrita, ela traz uma terceira camada — a da propriedade. É uma internet descentralizada, baseada em blockchain e contratos inteligentes. E talvez você não esteja familiarizado com esses termos, que parecem meio complexos, mas é justamente essa parte que mais interessa pra esse assunto aqui.
Blockchain
Pra fins de compreensão, imagine o blockchain como um caderno público em que todos podem ver que algo foi registrado — mas só quem tem a chave certa consegue ler o conteúdo completo da anotação. Cada nova transação — como uma venda, um contrato ou uma troca — vira uma nova página nesse caderno, e uma vez escrita, ninguém pode apagar ou alterar. Isso garante confiança sem depender de intermediários. Nem mesmo quem escreveu pode apagar o que foi escrito.
Logo eu chego nos contratos inteligentes, que é o mais importante.
Mas, resumindo: na Web3, os usuários podem possuir ativos digitais, ter voz na governança de plataformas e receber valor pelo que criam. Sai o modelo baseado em dados centralizados; entra o modelo de propriedade distribuída.
E o que isso tem a ver com quem escreve livros?
Hoje, o sistema editorial funciona com uma série de intermediários. O autor cria um livro, mas — exceto se optar pela auto-publicação — vai precisar de uma editora. E pior: vai ter que conseguir uma, o que quase nunca é fácil. Ou, tem sido cada vez mais difícil, ao menos tratando-se de boas editoras.
E com a editora, vem uma série de profissionais e empresas que compõem a cadeia do livro:
Revisores;
Capistas;
Diagramadores;
Copidesques;
Gráfica que imprime;
Distribuidora que entrega;
Livrarias e plataformas de venda, como a Amazon, por exemplo.
É um ecossistema complexo, e o modelo atual falha em reconhecer o valor de quem está na base criativa.
Hoje, o autor costuma ficar com apenas 10% do preço de capa por exemplar vendido. Um modelo extremamente injusto, em que o motor da criação é o menos remunerado.
Se o autor é o motor da criação, por que é o último a ser pago?
E tem mais: se o capista fez um trabalho autoral, por que ele também não é remunerado a cada exemplar vendido? Por que só recebe uma vez pelo trabalho? E o revisor? E o diagramador?
Abaixo, o modelo de divisão típica média de distribuição de % na cadeia produtiva de um livro no Brasil:
• Livraria / Varejista: 40% a 50% | É quem fica com a maior parte, especialmente grandes redes. Em livrarias de bairro, independentes, o percentual é menor.
• Distribuidora: 10% a 15% | Intermedia entre editora e livrarias às vezes integrada ao varejo.
• Editora: 20% a 30% | Arca com produção, marketing, riscos, e lucra sobre o todo.
• Gráfica: 10% a 15% | Custo de impressão, logística etc.
• Autor: 8% a 12% sobre o preço de capa (em média) | Em alguns casos, o pagamento é feito sobre o preço líquido recebido pela editora, o que reduz ainda mais o valor real.
Exemplo prático (livro a R$ 50,00):
- Livraria: R$ 25,00;
- Distribuidora: R$ 5,00;
- Gráfica: R$ 6,00;
- Editora: R$ 10,00;
- Autor: R$ 4,00.
Ou seja: o autor, que é o cérebro criativo da cadeia, frequentemente fica com menos de 10% da receita. E isso ainda pode ser dividido entre coautores, ilustradores, tradutores...
Alguns elos da cadeira poderiam se contentar com porcentagens menores? Não sei dizer. Não sei o quanto dessas fatias representam exatamente lucro e o que está e não está se pagando. O fato inegável é que se trata de um modelo que não se sustenta mais porque não faz sentido para todos que fazem parte da cadeia produtiva, especialmente para quem cria.
E é aqui que a Web3 pode abrir outras possibilidades, especialmente por causa do blockchain e dos contratos inteligentes.
Contratos inteligentes
São acordos digitais que se executam sozinhos, registrados em blockchain.
Eles seguem uma lógica simples: se acontecer X, então fazer Y — sem precisar de intermediários. Uma vez publicados, não podem ser alterados.
Pense neles como contratos que se cumprem por conta própria, de forma automática e transparente.
Portanto, se nas cláusulas desse contrato está especificado que o autor recebe 50%, o capista 15% e o diagramador 10%, cada vez que um livro for vendido, acaba um deles recebe automaticamente em suas contas os valores correspondentes.
Por ser descentralizada, a Web3 não concentra poder apenas nas mãos das grandes empresas. Com contratos inteligentes, cada pessoa envolvida na criação de um livro pode ser remunerada automaticamente — do autor ao capista, do revisor ao tradutor. Porcentagens são definidas previamente. O pagamento é automático. Ninguém precisa cobrar ninguém. Nem depender da boa vontade de ninguém.
Não quero soar ingênuo a ponto de cravar a Web3 como uma solução mágica, não acho isso. Eu nunca duvido da capacidade do ser-humano de estragar tudo. Mas pode representar uma chance de reescrever as regras, o que já é alguma coisa…
Se o livro é coletivo, o lucro não deveria ser solitário. Hoje, o modelo atual remunera melhor quem empacota (viabiliza) do que quem cria.
A lógica da Web3 é um modelo que vai na contramão da lógica da Web2 — que se tornou predatória, ultra-capitalista. A Web3, em teoria, traz a peça que faltava: os direitos de propriedade digital.
Podemos cortar intermediários, otimizar o processo e criar modelos mais justos. Mas isso não significa que tudo precise ser digital. Essa lógica se aplica a livros físicos também — o que muda é o tipo de contrato, as etapas da cadeia, os participantes.
Também não significa que todos os intermediários precisam desaparecer.
Por exemplo, se a Companhia das Letras, que é o maior grupo editorial no Brasil hoje, quiser se estruturar enquanto editora dentro da Web3 — e eles provavelmente vão, porque têm capital pra isso — tudo bem. Mas provavelmente vão ter também que entrar jogando um jogo mais justo. Porque os autores vão ter mais opções. Mais autonomia. Mais repertório.
Talvez, pela primeira vez, o autor consiga de fato assumir a autoria do seu próprio modelo de publicação, de maneira mais profissional e manos mambembe.
Eu recomendo muito o livro Web3: Traçando a Nova Fronteira Econômica e Cultural da Internet, do Alex Tapscott, publicado pela Alta Books. É uma leitura bem lúcida, sem hype, sem tecno-fetichismos. Mostra como essas novas arquiteturas digitais — blockchain, contratos inteligentes, tokens — estão redesenhando a economia da internet.
O autor não romantiza a tecnologia. Pelo contrário: ele mostra que esse novo momento exige crítica, experimentação e maturidade. Mas que também tem uma luz no final do túnel.
Por fim, esse manifesto é um convite à reflexão. É um chamado para começarmos a pensar juntos. Por isso, incentivo: comente, pondere, concorde, discorde, mas vamos dialogar.
A gente não precisa esperar por quem explora a gente puxar esse diálogo de forma a repetir esse modelo de "colonialismo editorial".
O que eu estou abordando aqui não vai levar 20 anos pra acontecer. Muito provavelmente já esteja acontecendo em pequena escala e, talvez, daqui 2 ou 3, no máximo 5 anos, já comece a acontecer de forma mais sólida e no mainstream editorial.
E aí, será que nós, autores e autoras, vamos finalmente conseguir ter voz nesse novo futuro?
—
Para você, que seguia ou assinava o Escritor Amador, minha newsletter prévia
Com essa postagem, eu inauguro uma nova newsletter aqui no Substack.
Com o Escritor Amador, minha intenção sempre foi trazer conteúdo prático que ajudasse autores e autoras a navegarem por esses tempos complexos em que precisamos equilibrar os pratos, escrever, vender, performar, aparecer, ter empregos paralelos que pagam os boletos e assim por diante. Isso tudo continua válido e acho que a newsletter cumpriu seu papel enquanto existiu sob esse nome.
Mas… igualmente importante, para além de pensar no presente da literatura, é pensar no futuro do meio editorial e da literatura. Como será “ser escritor(a)" daqui 5 anos, 10 anos, 15 anos? Você já pensou nisso?
Embora certos pilares da literatura talvez se mantenham os mesmos (espero que aqueles que importam, sim), formas e meios certamente mudarão. Talvez, daqui 5 anos, você tenha um avatar do autor sentado no sofá da sua casa narrando a história pra você. Eu sei que parece ficção demais, e perto demais pra ser real, mas acredite, estudo muito sobre isso e é um cenário planamente possível, ao menos para os ricos e para uma classe média (se a classe média ainda existir daqui 5 anos…) dada a evolução de certas tecnologias, a minituarização de certos componentes e a redução dos preços. E em algum momento, isso vai chegar para todos os estratos sociais, assim como aconteceu com os celulares.
As realidades mistas vão chegar com tudo, com óculos (e lentes) que sobrepõe camadas de dados/interfaces digitais sobre os ambientes reais. Não vamos conseguir impedir esse futuro, portanto, cabe a nós começarmos a pensar nosso lugar ético nele, nosso papel, sem que nossos valores e crenças sejam comprometidos.
Por isso estou puxando esse tema, com o FUTURATURA. Quero abrir essa frente não como alguém que vai falar sozinho, mas como uma voz que é parte de um coletivo que vai começar a pensar o que pode ser nosso futuro na literatura de amanhã.
Espero que você que já era meu assinante siga comigo. Ainda vou falar de coisas do presente, ainda quero dar dicas, mas vai ser instigante falar também do futuro.
E a você, que cruzou com meu conteúdo pelo primeira vez nesse post, fica o convite para torna-se um assinante gratuito (ou ainda melhor, pago!) agora mesmo.
Um abraço
André Timm
gosto da ideia; mas penso que muitos autores não teriam a maturidade para gerenciar suas próprias escolhas (ou carreiras, por assim dizer). Nessa lacuna também surgiram outros intermediários. Estou cansado de receber uma positiva de uma editora (Ola, seu livro foi aprovado para publicação...) e receber um contrato de co-participação. Eles (seviços gráficos) preenchem lacunas de quem (autores) não possuem outros intermediários (copidesque, capista, diagramador...) Eu, particularmente, recuso as ofertas pois faço eu mesmo, meus livros digitais e impresso. Ok, bom para mim? Nem tanto. Me falta o meio, a vitrine de uma editora. E talvez os esforços de mkt. campanhas, acordos, vitrine mesmo em seus portais de e-commerce.
Já tentei fazer eu mesmo essa parte (mais uma!) mas foi risível. A cada $50 gastos em campanha digital, eu precisava vender 3, 4 livros... depois dos primeiros $50, tive 200 visitas e 0 vendas.
Acendeu o sinal amarelo e parei com as campanhas. Não se pagavam. Enfim, talvez fosse um problema com a propria campanha, ou o meu livro não despertou o interesse, não atingi meu público... sei lá! Criou-se uma lacuna. Não tenho maturidade para viabilizar uma nova campanha! E atualmente não estou disposto ($$) a contratar alguem para corrigir isso.
Agora, voltando ao inicio: é necessário maturidade para assumir esses papéis (autor e editor, grafica, mkt... rp, o que for) e agora um blockchainER, com o perdão do neologismo. Finalizando, vou pesquisar, dar uma olhada em como cifrar dados em blockchain... clarear a mente. abs.
Muito bom!