Nós somos como a aranha. Tecemos nossa vida e a vivemos. Somos como o sonhador que sonha e depois vive o sonho. Isso vale para o universo inteiro.
UPANISHADS
De textos védicos milenares ao Surrealismo à própria Psicanálise, inúmeras culturas e áreas do conhecimento já se debruçaram em buscar investigar e compreender ou se valer das possibilidades que os sonhos entregam como matéria prima. Freud definiu o sonho como a porta que permite o acesso ao inconsciente, “a principal estrada que leva ao conhecimento dos aspectos inconscientes de nossa vida psíquica". Ainda assim, mesmo em meio à vasta bibliografia que trata do fazer literário como ofício, o tema parece pouco abordado. Eu, ao menos, não lembro de ter lido sobre a prática da investigação onírica em nenhum dos livros sobre literatura ou escrita criativa para os quais olho agora, à minha frente, e que preenchem duas prateleiras inteiras.
"Os sonhos trazem do nosso inconsciente para a consciência desejos mais reprimidos e “proibidos”, desejos recalcados, no qual [...] inibimos nossos objetos de desejo. E é através dos sonhos que temos a capacidade de vivenciar esses objetos. Entrando profundamente nesse vasto e misterioso mundo de desejos reprimidos, fazemos um mergulho ao nosso inconsciente, mergulhando para dentro de nós mesmos, tentando procurar o máximo de satisfação e realizações"1.
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A linguagem simbólica e cifrada dos sonhos, e sua investigação mediante chaves de leitura, consiste no desafio psicanalítico que Freud estabelece. Mas para além da psicanálise, na escrita, talvez pouco nos interesse decifrar sonhos, mas antes de tudo, apenas capturá-los ou, ao menos, os resquícios que vazam do sono para a vigília.
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Assim, a adoção da prática de manter um diário onírico é uma tentativa de vislumbrar os fragmentos dessa vivência onírica quando estamos acordados.
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Sidarta Ribeiro, em O Oráculo da Noite, também aponta que "O sonho é essencial porque nos permite mergulhar profundamente nos subterrâneos da consciência". Em meio à fascinante perspectiva mitológica que traz sobre o sonho, Sidarta também o define como um “viver para dentro”:
"Hipnos, o deus grego do sono, é irmão gêmeo de Tânatos, o deus da morte, ambos filhos da deusa Nix, a Noite. Transitório e em geral prazeroso, Hipnos é profundamente necessário à saúde mental e física de qualquer pessoa.
Algo muito diferente acontece durante o curioso estado de viver para dentro a que chamamos sonho. Ali reina Morfeu, que dá forma aos sonhos. Irmão de Hipnos segundo o poeta grego Hesíodo, ou filho de Hipnos segundo o poeta romano Ovídio, Morfeu leva aos reis as mensagens dos deuses e lidera uma multidão de irmãos, os Oneiros.
Esses espíritos de asas escuras emergem a cada noite através de dois portões, um feito de chifre e outro de marfim, como morcegos em revoada. Quando cruzam o portão de chifre — que, quando adelgaçado, é transparente como o véu que recobre a verdade -, geram sonhos proféticos de origem divina.
Quando passam pelo portão de marfim — sempre opaco mesmo quando reduzido à espessura mínima —, provocam sonhos enganadores ou desprovidos de sentido".
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Culturas milenares compreendiam o sonho tanto como um estado mental em si (svapna) quanto como uma porta de acesso para um outro estado mental (turiya2), entendido como consciência pura, uma experiência não dual com o infinito.
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Mas se sonhar é "viver para dentro", igualmente fascinante é buscar perceber de que matéria são feitos os sonhos, ou seja, o que e como jogamos para dentro de nós, o que capturamos e de que forma isso é amalgamado até tornar-se esse tipo único e estranho de narrativa em que ao mesmo tempo somos protagonistas e expectadores. E embora os sonhos pareçam, à primeira vista, uma experiência pessoal, na verdade também tratam, em alguma medida, do coletivo.
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Em Sonhos do Terceiro Reich, a autora Charlotte Beradt aponta que “Sonho e loucura não são acontecimentos individuais e privados, mas experiências intervalares entre o individual e o coletivo, entre o público e o privado. Quando Hitler chegou ao poder em 1933, Beradt iniciou uma pesquisa secreta: entrevistou alemães para coletar sonhos relacionados às recentes mudanças políticas no país e à difusão do terror nazista em larga escala. O trabalho durou até 1939 e só veio à luz em 1966, em que os sonhos de trezentas pessoas ajudaram a interpretar a estrutura de uma realidade prestes a se tornar um pesadelo.
Entre 1933 e 1939, Hitler remilitarizou a Alemanha e, aproveitando-se da crise econômica, fez passar leis duras e segregativas. Inflou o ressentimento social contra minorias e colocou a nação sob a égide do trabalho, censurando e perseguindo seus opositores. Ele foi leniente com a violência organizada pelas milícias, capitalizando as divisões sociais já existentes. Serviu-se da ascensão de uma nova casta de intelectuais e contou com uma nova filosofia jurídica formada para lhe dar cobertura parlamentar. Unificou seus inimigos, disseminando a cultura do ódio, do medo e da suspeita.
As trezentas testemunhas oníricas desse processo, aqui reunidas, não chegaram a ver a guerra ou os campos de concentração, mas de certa forma são como a antecipação de um futuro próximo. Não porque esse seria um futuro desejável, nem porque os sonhos sejam efetivamente capazes de adivinhar o futuro. Basta pensar que se os sonhos são feitos de desejos e se nossos desejos são formados pelos desejos dos outros e pela nossa interpretação dos desejos desejados pelos outros e se o mundo se transforma, em alguma medida, em função de nossos desejos, conclui-se que os sonhos são máquinas de produção de futuro possíveis, a partir de leituras do presente em sua relação com passados necessários para justificar tais futuros.