2 trechos inéditos de OBJETO CINTILANTE: HISTÓRIA SULFÚREA
Meu próximo romance, a ser lançado em breve pela Faria e Silva
Trecho 1
O celular vibrava, abafado pelo amontoado de lençóis e cobertas em cima da cama. Um buraco negro portátil, fazendo exatamente o que buracos negros fazem, sugando tudo que passa próximo a eles, uma massa tão densa e compacta, que tudo que é puxado para seu universo é esmagado, destruído ou desfigurado. Mas havia algo de reconfortante em ser capturado para dentro daquela dimensão onde o tempo parecia passar mais devagar, nos feeds onde tudo soava mais ou menos perfeito, ideal, onde era possível esquecer tudo mais que estivesse do lado de fora, as responsabilidades, a pressão, os absurdos, os riscos de um mundo patriarcal, tão avançadamente tecnológico e, ao mesmo tempo, tão arcaico em praticamente todos os outros aspectos. De onde estava, no banheiro de seu quarto, Antônia conseguia ver cada vez que o telefone tocava. E em cada uma dessas ligações que morriam sufocadas nos lençóis, era o rosto de Miguel que aparecia na tela, de forma insistente, através de sucessivas tentativas, como se não entendesse que não havia mais vontade alguma de Antônia em ter qualquer contato com ele daquele momento em diante. E a cada uma dessas chamadas não atendidas, as duas Antônias, aquela no espelho e a dona do reflexo, apenas olhavam com a visão periférica, enquanto tensionavam a pele junto ao canto dos olhos, os delineando.
A luminária do quarto zumbia discretamente há alguns dias. Um modelo sofisticado mas antigo, cujo mecanismo exigia alguma perícia, um movimento sincronizado que precisava girar ao mesmo tempo em que deveria ser puxado para fora. Algo que Antônia já havia visto seu pai fazer muitas vezes mas que mesmo ele demonstrava alguma dificuldade no processo, embora ela não soubesse se por falta de jeito ou se porque, de fato, fosse realmente difícil. De toda maneira, Antônia acreditava que o momento da relação entre eles não era exatamente o mais propício para um pedido de ajuda banal como aquele. E de alguma maneira harmonicamente improvável, o zumbido discreto da luminária se sobrepunha, como que na mesma frequência, à vibração abafada do celular sobre a cama. Se Miguel insistia em ser atendido, a luminária solicitava sua substituição, embora Antônia estivesse resoluta a ignorar ambos. Ela entendia que a relação com Miguel precisava de um término imediato. E que de certa forma Miguel, se repetia no seu pai e que seu pai se repetia em um sem fim de homens, e em algumas mulheres, que agiam de acordo com um código e com valores que não pareciam mais fazer sentido naquele momento do mundo. Não porque achasse que a gravidade dos atos do pai equivalessem as de Miguel, seu pai nunca a havia agredido, mas por compreender que aquilo que motivava as ações de ambos, ainda que com diferentes pesos, vinham do mesmo lugar, da mesma forma de pensar.
Quando o celular tocou novamente, não era Miguel, mas Isabela, que Antônia atendeu em uma chamada de vídeo, posicionando o celular sobre o balcão da pia, enquanto continuava sua maquiagem. O celular prestou atenção a cada detalhe. Uma inteligência artificial curiosa, coletando um mundo de significados ao seu redor, traçando e re-traçando em um loop obsessivo o perfil daquela família, das complexas relações que estabeleciam o modus operandi daquela casa, marcando ênfases, analisando entonações, repetições, estruturas frasais que entregavam preferências, semanticamente calculando possibilidades de um rentismo de dados, leiloando interesses entre anunciantes para ver quem pagava mais pela atenção de Antônia, assim como acontecia exatamente no celular de Isabela, e de Dante, e de Alice, e de cada um dos bilhões de pessoas que tinha um deles. E no caleidoscópico que agora havia se estabelecido, entre os duplos na tela do celular e no espelho, as infinitas versões de Isabela e Antônia falaram sobre o que Miguel havia feito, sobre a possibilidade de denunciá-lo à polícia, sobre o término urgentemente necessário dessa relação e sobre o fato de que Dante e Alice, de forma alguma, pudessem saber sobre aquilo, dada a reação previsível que teriam. Especialmente Dante, que de acordo com a estimativa de Antônia, diria que havia a avisado, que o sujeito não prestava, mas que a culpa no fim era dela, Antônia, por atrair homens daquele tipo dada a maneira como se mostrava e se portava nas redes sociais.
Tivesse acesso à câmera da garagem, Dante teria visto Antônia num ataque de fúria socando o volante do automóvel. Tivesse acesso à câmera do elevador, teria visto Antônia chorar de raiva sozinha, limpando rapidamente as lágrimas antes que fosse surpreendida por algum vizinho. Tivesse acesso às pesquisas do Google da conta de Antônia, teria encontrado termos como “queixa agressão física delegacia da mulher”, “terminar relação sem correr risco”, “arma de choque bolsa”, “spray de pimenta bolsa”, “tática para apagar redes sociais”. Tivesse acesso ao histórico da Alexa no quarto de Antônia, teria visto a busca de playlists como “Tô feliz”, “Bem-estar”, “Motivação”, “Happiest songs”, “Positividade”, “Dia de sol”. Tivesse acesso à lixeira do celular de Antônia, Dante teria visto todos os breves vídeos apagados com movimentos repetitivos que iam e retrocediam, todas as centenas de selfies e seus sorrisos tristes cujo destino foi o lixo. E se Dante, ou Alice ou mesmo a amiga Isabela, pudessem ir ainda mais fundo, mas na verdade jamais poderiam, pois esse é um nível de profundidade em que somente as máquinas se entendem entre si, teriam podido ouvir as dezenas de interpretações algorítmicas das escutas ativas das sessões de Antônia com o terapeuta, monitoradas à exaustão pelos celulares na bolsa, nos bolsos, enviadas para a nuvem, processadas em alguma fazenda de servidores remota, mas de localização não divulgada, um data voyerismo concedido por contratos que ninguém lê mas com os quais todos concordam, vagamente justificados sob o argumento de ajudar a melhorar a qualidade da inteligência artificial das assistentes pessoais, dos serviços de busca, da compreensão das máquinas, da sua capacidade de entender e recomendar, que em outros termos queria dizer apenas “vender”.
Nesse momento, só as máquinas e Antônia sabiam exatamente o que ela estava sentindo. E enquanto ela finalizava os últimos detalhes da maquiagem, sentiu raiva mais uma vez, cobrindo com base os hematomas no pescoço. Uma sobreposição de tons que iam do roxo aos pastéis, lembrando a paleta de uma obra de arte de natureza morta. As marcas dos dedos de Miguel no pescoço de Antônia eram as marcas de todos os homens do mundo tentando sufocá-la, abafá-la sob os lençóis para que nunca mais pudesse dizer nada que os desagradasse, nunca mais pudesse fazer nada que os contrariasse ou os superasse, apenas um buraco a ser preenchido, uma Antônia muda e vazia, do jeito que todos estes homens desejariam que uma mulher fosse.
Trecho 2
Funciona como um pan-óptico. Uma estrutura onde um único vigilante é capaz de observar a todos os prisioneiros, sem que estes, entretanto, saibam exatamente se estão ou não sendo observados. O conceito, entretanto, se diluiu e se descentralizou. Um sem fim de dispositivos vigia Antônia. E embora agora estejam fragmentados, todos eles são o mesmo, são um só.
A câmera de seu computador é capaz de saber com precisão as áreas para onde Antônia dirigiu seu olhar durante um vídeo no YouTube, e isso entrega mais do que parece entregar, especialmente quando cruzado com o histórico de pesquisas no buscador, e por sua vez com os vídeos curtidos, com as postagens em que se demorou por mais tempo no Instagram, ainda que alguns centésimos de segundos a mais, e com todas as palavras verbalizadas, com as categorias sexuais mais pesquisadas no Xvideos ou no Pornhub, com os tipos de compras online, com as mensagens trocadas, criptografadas para o usuário comum, mas não para as máquinas.
Nesse éter de dados arrancados voluntariamente de Antônia, uma mulher de vinte e dois anos cuja vida, em sua grande parte, é indissociável da internet, milhões de cálculos por segundo constatam conexões a que nem o terapeuta mais astuto e experiente seria capaz de chegar, simplesmente porque o cérebro humano não é capaz de processar volumes tão superlativos de informação e, portanto, é incapaz de constatar as ligações entre elas nesse vórtice febril e delirante de sinapses artificiais incessantes, e muitas vezes forçadas.
E mesmo que Antônia escolhesse viver uma vida em que evitaria a internet, ainda assim viveria em um mundo criado e mediado por ela, com regras impostas, vigiadas e alimentadas por quem faz a internet e por que tem interesse em que ela continue sendo o que é.
E nesse momento, a internet de Antônia consiste em uma fábrica de estímulos para surpreendê-la, porque seu mundo parece tedioso. O celular de Antônia a ensinou a perceber a realidade como uma constante de estímulos. Mas o problema de viver dessa maneira é que o sobressalto tem vida curta, de forma que, rapidamente, sente-se a necessidade do próximo. Uma realidade que vai se tornando cada vez mais espectral, intangível, uma realidade de informações, e por isso mesmo, de não-coisas, porque não se agarra a informação com as mãos, não se nutre um valor afetivo pelas informações, não se guarda as informações dentro de um baú. Não se possui as informações, apenas se tem acesso a elas.
O quarto de Antônia é um tipo de elo perdido entre eras. Um celular, um computador, um tablet, uma televisão, carregadores, cabos, uma assistente pessoal, um roteador, aparelhos especializados em produzir não-coisas, disputando espaço com pequenos objetos de toda sorte que Antônia acumula desde a infância. Coisas, em sua grande parte, diminutas, mas que carregam histórias. Adesivos, recortes de revistas, pedrinhas, miniaturas, bilhetes e fotos, coisas que se somam, que dizem algo, que têm alma, talvez uma tentativa de Antônia de compensar a desestabilização que as não-coisas causam.
Uma fotografia ocupa um lugar de destaque. Dante, Alice e Antônia em um zoológico. Antônia tem dez anos. Estão bem à frente da jaula do leão, que parece rugir, de pé, as patas para cima apoiadas na grade. Dante, Antônia e Alice também rugem, cerram os dentes numa careta feroz ensaiada, um ensaio seguro, visto que entre a jaula e o local onde estão, há um fosso. A foto é uma foto analógica. O registro de um momento congelado, o fantasma do tempo aprisionando numa jaula de celulose. A foto envelhece com Antônia, como deveria ser. Não há informações nela, somente uma história.
Mas o divisor de eras, na verdade, talvez não seja propriamente o quarto de Antônia, mas o corredor que dá acesso aos diferentes cômodos da casa e distribui portas. Nesse corredor há um dispositivo obsoleto, um telefone de fio que repousa no escuro, na madrugada, sem uso, exceto pelo fato de dividir eras. Há anos já não toca, há anos seu gancho não é levantado da base, mas ele resiste, impassível, silencioso noite adentro, como se nunca perdesse a esperança de ser usado outra vez, ainda que talvez já não haja mais nem mesmo uma linha telefônica conectada a ele. Persiste por seu valor simbólico, um avatar representando outro mundo, como se estivesse a lembrar a todos que por ali passam que um dia aquela casa já foi mediada por coisas que tinham densidade, que entregavam sem tomar em troca.
Hoje, todo o vazio de Antônia é a falta do leão rugindo e posando para foto, as enormes patas apoiadas sobre a grade, a linha da cabeça felina e da juba revolta alguns palmos acima das cabeças de Dante, Antônia e Alice. Esse vazio é a falta de se permitir brincar de rugir. Todo mergulho no não-real é uma tentativa de voltar àquele dia, àquele tempo, àquela Antônia, àquele Dante e àquela Alice. O dedo que toca essa foto com afeto e saudade, percorrendo os rostos, a paisagem, a juba do leão, é o mesmo dedo que hoje, desesperado, pensa que comanda, que exclui o que não lhe interessa e amplia o que lhe agrada. Esse dedo que tudo escolhe, o mesmo dedo com que Antônia se toca, com que procura nas profundezas úmidas dela própria uma Antônia preservada em fóssil em suas eras geológicas, esse dedo que pensa que manda, que curte, que arrasta, que passa para lado, o dedo que escolhe parceiros sexuais em um aplicativo com a mesma fome e o mesmo desinteresse que escolhe o que comer à noite, também em um aplicativo.
Às vezes, na profundeza da noite e de seu quarto, Antônia liga o celular e no modo selfie brinca fazendo caretas, fingindo o rugido do leão, da Antônia de dez anos. Às vezes chora, e nunca postou nenhuma dessas fotos.
No computador sobre a escrivaninha, o YouTube exibe no feed diversos vídeos sobre produtos de maquiagem testados por pessoas parecidas com Antônia, ainda que ela não tenha pesquisado sobre isso.
André Timm escreve o nosso tempo com o olhar apurado de quem não tem medo de encarar verdades, por mais indigestas que elas sejam. Objeto cintilante: história sulfúrea é um assombro, pelo desconforto que quase podemos tocar em cada página, pelo espelho gigantesco que se impõe diante dos nossos olhos, e pela beleza de uma história bem contada, sem subterfúgios ou fugas. Timm vem traçando o seu caminho na literatura com personalidade, constância e muito talento. Esse livro é uma voz autoral em sua melhor forma, mas só até que venha a próxima obra. Estamos diante de um autor que se supera a cada projeto e que nos deixa intrigados e aflitos por mais.
Marcela Dantés
Apresentação
OBJETO CINTILANTE: HISTÓRIA SULFÚREA narra um episódio na vida de uma família de classe alta que tenta se reerguer após a morte trágica da filha, Antônia, vítima de um namorado abusivo que não tolera suas escolhas nem o término da relação, fato que é estopim de uma cadeia de eventos que culmina no acidente de automóvel que mata Antônia e que se torna famoso na internet.
A perda, por si só, já é dolorosa. Mas o que assombra a família é a impossibilidade de processar o luto, uma vez que é como se revivessem a morte a cada vez que algum anônimo os envia, com mensagens cruéis e irônicas, as imagens do acidente e do corpo vazadas e rapidamente espalhadas na internet.
Da maneira como são projetados os algoritmos das redes sociais até a própria forma como agem os haters, há uma lógica insidiosa que permeia tudo e constroi as bases dessa mediação perversa que a tecnologia desempenha, ajudando a desenhar o zeitgeist da atualidade.
Quanto à narração, é como se este narrador onisciente, em muitos momentos, se valesse de tudo que os equipamentos que nos cercam dizem sobre nós. As câmeras de segurança que filmam o acidente; Os computadores; Tablets; Assistentes pessoais que tudo monitoram à espera de comandos; Smartwatches que buscam informações sobre nossa saúde; E robôs-aspiradores que usam câmeras e sensores, entre tantos outros dispositivos. Todos são fontes de informação a alimentar essa narração.
Através do que nós acessamos, a internet, essa entidade narrativa, sabe como estamos nos sentindo, o que compramos, o que desejamos, do que temos medo, quais nossas fugas, angústias, quais nossas preferências, inclusive sexuais. Sabe de nossas agendas, onde estivemos, qual caminho percorremos para chegar lá, para onde vamos. Nossos celulares sabem mais intimamente sobre nós mesmos do que nossos terapeutas, de modo que talvez sejam nossos narradores mais sinceros e cruéis hoje.
Assim, a história trágica de Antônia, Dante e Alice vai sendo contada, em uma atmosfera niilista, através dessa mediação por uma tecnologia que pode ser opressiva e perversa, mas que ao mesmo tempo, é apenas um reflexo do que nós mesmos somos enquanto sociedade.
André Timm, dono de um ritmo narrativo dinâmico e de incrível fluidez, nos apresenta uma história que, além de incomodar, comove. O retrato de uma família comum, ou seja, disfuncional e problemática, é o que nos leva para dentro da narrativa sobre Dante, Alice e Antônia, personagens que podem ser, dolorosa-mente, qualquer um de nós entrelaçados intimamente pela dependência de uma tecnologia que nos escraviza muito mais do que ajuda. Com sensibilidade e uma linguagem clara e afiada, Timm propõe temas duros e os quais, no mergulho da noite, dentro do nosso próprio escapismo virtual, nos amedrontam e nos engolem de culpa. Objeto cintilante: história sulfúrea é um livro intimamente violento e que perturba porque também emo-ciona. É aquela paz aparente que sentimos quando a casa está em silêncio e, ao repararmos bem, vemos cada membro da família em estratégias de fugas virtuais e viciantes. Uma fuga de nós mesmos que passa a ser a viagem mais irreversível, mais irresistível e a mais dramática
Nara Vidal